Memórias, sementes e colheitas

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Louveira - Plantação de Uva. Foto Márcio Masulino

O desenvolvimento dos municípios que hoje formam o Circuito das Frutas tem raiz no Ciclo do Ouro, quando pousos, armazéns e capelas erguidos nos caminhos para as minas em Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais deram origem às primeiras freguesias do antigo Sertão de Jundiahy. Por quase dois séculos, esses núcleos serviram de apoio a tropeiros. A virada ocorre no século XIX: o café, que migra do Vale do Paraíba, encontra terras férteis, clima favorável e posição estratégica em relação à capital e ao porto de Santos. 

A cultura cafeeira reorganiza a economia e o território: pequenas freguesias são elevadas a vilas e, depois, a cidades; surgem infraestrutura, comércio, serviços e uma elite agrária, os barões do café, com forte influência política no Império.

A partir de 1888, com a abolição da escravatura no país, há uma nova era na região. Para substituir o trabalho cativo e manter a engrenagem produtiva, o Estado incentiva a imigração europeia (com destaque para italianos, mas também portugueses, espanhóis, alemães e suíços) e, mais tarde, japonesa. Tratados, subsídios e propaganda atraem milhares de lavradores. A adaptação, porém, é dura: muitos colonos se deparam com condições precárias, fruto de uma mentalidade senhorial acostumada à escravidão. Ainda assim, gradualmente, esses grupos incorporam saberes agrícolas, introduzem técnicas e variedades, e se enraízam.

A expansão ferroviária é decisiva para o desenvolvimento dos municípios. As ferrovias encurtam distâncias, permitem o fluxo de insumos e, sobretudo, o escoamento do café para a capital e o litoral. A mesma malha, mais tarde, sustentará a diversificação agrícola. Quando a crise de 1929 derruba os preços internacionais e põe em xeque grandes propriedades, muitos imigrantes e descendentes conseguem adquirir parcelas de terra menores. A paisagem produtiva se fragmenta e se especializa: entra em cena a agricultura familiar, mais flexível e apta a responder à demanda por produtos frescos.

É nesse contexto que se forma a vocação frutícola regional. A experiência trazida por imigrantes somada às condições naturais favorece a implantação de pomares e parreirais. Uvas de mesa e de vinho, figo, caqui, pêssego e, em altitudes mais elevadas, morango, passam a compor uma matriz produtiva mais diversificada e menos vulnerável a choques externos. 

Alguns marcos ilustram o processo sem depender do calendário festivo: em Valinhos, no início do século XX, a introdução do figo roxo cria uma base econômica sólida; em Jundiaí e entorno, a viticultura se consolida e, em 1933, a identificação da mutação Niagara Rosada dá identidade própria à região; em Itatiba, o caqui, incorporado nos anos 1920, reconfigura a paisagem rural. Municípios vizinhos seguem trajetória semelhante, ora com foco em uvas de mesa, ora em frutas de caroço, ora em frutos vermelhos, sempre combinando trabalho familiar, tecnologia gradual e proximidade dos mercados consumidores.

Ao longo do século XX, três vetores consolidam a transição: a desconcentração fundiária pós-crise do café, que amplia o número de pequenos e médios produtores; a continuidade da infraestrutura de transporte, agora também voltada a perecíveis; e a difusão técnica promovida por comunidades imigrantes e seus descendentes, que ajustam calendários de poda, condução de plantas, seleção de mudas e práticas de manejo ao ambiente local. 

Quando a denominação “Circuito das Frutas” surge, no início do século XXI, ela nomeia uma realidade forjada ao longo de mais de cem anos: a de uma região que saiu do monocultivo exportador do café, atravessou a abolição e a imigração, incorporou tecnologia e organização familiar e se reencontrou na fruticultura. Essa trajetória explica por que uvas, figos, caquis, pêssegos, morangos e outras culturas deixaram de ser apenas alternativas e se tornaram o eixo econômico e identitário de cidades que, hoje, associam produção, qualidade e proximidade do consumidor como marca de origem.

Vinhedo – Desfile na Festa da Uva, 1964. Foto acervo Cida Gallo
Valinhos – Festa do Figo no Largo de São Sebastião, déc. 1950. Foto Haroldo Pazinatto
Jundiaí – Festa da Uva, 1953. Foto Divulgação

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